domingo, março 01, 2020

Cambiar o traço


Poderíamos traçar umha linha da pobreza, em ascendente, desde o centro da cidade até os bairros mais periféricos. Poderíamos traçar umha linha da tristeza perpendicular às soidades que habitam a cidade, para recolher todos os planos, cada um dos ángulos. Pensar a cidade desde a pobreza, desde a tristeza, desde a soidade, desde a incerteza…, para construir espaços de coidados, dignidade, seguridade, acompanhamento, solidariedade…

Os caminhos das mulheres. Mulheres cargando compras, carrinhos com crianças. Mulheres fazendo os caminhos à escola, ao trabalho de madrugada. Mulheres sem caminho, nas casas coidando, ou soas. Mulheres transitando esquinas apagadas, túneles escurecidos de curvas inquietantes. A cidade excluínte, ameaçante.

A linha da pobreza cara as casas de humidades eternas, janelas pequenas por onde se filtra o vento e os reumas, o sal das paredes a sugar água e fungos derramados em todas as estáncias. Impossível que a beleza do pano na mesa, oculte os teitos descascados. Ascensores oscilantes e falsos que às vezes faltam à cita. Andares elevados onde ficam prisioneiras as vidas limitadas..

Farolas apagadas ou rotas, bancos arrincados e papeleiras esgazadas que incidem no desalento. Contentores impossíveis, com tapas impossíveis, com barras impossíveis que deixam o lixo ao capricho das gaivotas ou das ratas. O vento acumulando, afetado de diógenes, resíduos plásticos nas coordenadas dumha escada esbaradiza.

Chuvia paralisante. Nom há onde ir, difícil encontrar-se. As crianças rebotando nas esquinas das casas, passarinhos atrapados. Sair só ao mandado, para sobreviver, deixando o viver aparcado. Amanhar com o mínimo, até que dê escampado. A ver se a febre passa e a roupa dá secado.

A vida em soidade. A radio sem bateria e o televisor moi alto, moi alto, que nom se escuita claro. Na mesa só um prato, e as tardes vam caindo junto às noites, como as folhas num outono dilatado. Sair às escadas, precipício de aventuras arriscadas, pensando na descida e pensando na chegada, calculando gramo a gramo, o que se pode cargar até casa. Tam longe o imenso espaço de hipermercado em secçons organizado, tam extenso o caminho a recorrer para ter o necessário!

A morte em soidade. A traiçom dumha caída, a dor, a fame, a sede. As horas eternas aguardando, mentres as imagens da vida vam passando, alegrando e amargando. A loucura de ver-se no final tam esquecida. Aguardar ao cheiro filtrado baixo a porta, para que venham recolher os restos dumha vida. A cidade em celas dividida.

Quem construi de costas ao que somos? A cidade nos possui e nos ordena. Quem nom nos pensa? Quem pom barreiras no caminho? Quem nom traça caminhos seguros para andares diferentes? Quem separa a vida da eficácia e a destreza? Quem impom, bêbedo de benefícios, que a cidade nos seja alhea?

Suster a vida, como tarefa colectiva. Compartida. Para traçar novos planos e reabilitar a cidade para a vida. Eis a olhada feminista cambiando o traço na gestom do espaço.

Artigo publicado em Crítica Urbana.

Revista de Estudios Urbanos y Territoriales Vol.3 núm. 11 Mujeres y ciudad.

A Coruña: Crítica Urbana, marzo 2020.

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