domingo, julho 03, 2011

Zapatos rotos

Nom escrevo nunca sobre o meu trabalho, é como se este jeito de espir-se em público, rompesse a intimidade necessária entre a mestra e o alunado. Se o fago agora é porque, desde os oitenta, nom volvera a ver zapatos rotos nas aulas, e sinto-me chamada a denunciá-lo, falá-lo alto para que se saiba, para que se escoite. Preciso pôr os zapatos rotos em riba de todas as mesas, de todos os despachos. Se quadrar, em riba de todas as consciências...

A escola pública, com luzes e sombras, vinha nestas últimas décadas, fazendo dalgum jeito de conversor de desigualdades. Coidava às crianças, dando-lhes de comer, guardando-as ao quente e em lugares limpos e salubres...  Achegava-os a mundos às vezes inalcançáveis, coma a música, o cinema, o teatro, a literatura de qualidade, os museus... A escola era o lugar de encontro com iguais, para quem vivia longe de outras crianças, e era o lugar para aprender valores de Cooperaçom, de Ecologismo, de Paz e ultimamente também de Igualdade. A escola transmitia os nossos sinais de identidade, fazendo em muitos casos labores de recuperaçom impagáveis, com o Antroido, o Samaim e Magostos, os Maios... e também foi motor de dignidade para a nossa Língua, e saiu na defesa do país quando o chapapote salpicou as janelas das aulas... Ademais de todo isto, a escola desenvolvia um curriculum e acatava normas e decretos, que a instruírom em singraduras cheias de tormentas e rumbos incertos, mas onde a pericia colectiva da comunidade escolar, sempre mantivo o barco a flote.

A escola ía aprendendo a acolher a cada quem como era, atendendo as suas particularidades e necessidades, buscando o seu acobilho nas melhores circunstancias. Falo em passado por precauçom, porque o presente e o futuro som de zapatos rotos. No presente a escola pública, a escola com maiúsculas, vê-se na obriga de volcar as suas energias em defender-se a si mesma, como instituiçom, como serviço público de qualidade, como casa de todos e de todas, onde ninguém pode ser rechaçado ou rechaçada, onde a ninguém se lhe pode exigir mais do que tem ou do que pode dar. Até agora, quando o trabalho, os recursos que chegavam a cada casa eram escasos, a escola, a sanidade, e os serviços sociais, estavam aí, com todas as eivas que poidamos lembrar neste momento, mais estavam, e botávamos mam delas para cambiar zapatos rotos, por seguridade, saúde, afecto e alegria.

Os depredadores estám aqui, às portas das nossas escolas. Nalgumhas, como San Xoan de Filgueira, no meu concelho, o profesorado e as famílias, precisam já de guarda-las de noite e de día, porque o zarpazo quere ser mortal. Assim, com a presencia continuada dos seus próprios corpos, numhas instalaçons que deveriam estar baleiras polo merecido descanso estival, querem simbolizar  a defensa do que é um bem comúm e um direito universal, precisamente numha escola onde os nenos e nenas conformam um abano de múltiples miradas, cores e cantos.

Com astucia, os depredadores vam marcando ailhadamente as suas vítimas. Por isso cumpre ver-nos como um todo, como sociedade, como povo atacado no mais fundamental dos seus direitos, e assim atuar, desde a unidade e a fortaleza que dá sentir que somos a maioria. Só assim poderemos manter o que temos e avançar no que é nosso, no que é de todas e de todos. Esses zapatos rotos deveriam ser nas nossas consciências, a cunha que nos permitira frear a nória privatizadora. Umha nória que vira e vira baleirando os direitos de moitas crianças, enxoitando as suas vidas e o seu futuro. Um futuro que volve um dia trás outro a cotizar na bolsa, e quanto mais gris e frio se volve, mais cotizam os seus activos, aumentando a voracidade insaciável dos depredadores de direitos.

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